Pendurar as Chuteiras

Pra quem se interessa em saber, estou muito longe de “pendurar as chuteiras”, provavelmente nem mesmo a passagem para outra dimensão me faria me aposentar.
Tenho muito a dizer, a esse respeito.
Porque exatamente as pessoas “se aposentam” , “penduram as chuteiras”, dizem um “basta ” na carreira ?
O que é exatamente encerrar uma carreira ?
Porque as pessoas declaram para o mundo :
“Para mim, chega ! … Cansei.”
Encurtando a resposta, é parar de sonhar.
O que cansa não são os shows, as viagens, os ensaios, as gravações, os programas de rádio, de TV, as entrevistas, etc., etc.
O que cansa mesmo é sonhar.
É projetar na arte uma ilusão de que a arte seja necessária para o mundo.
Que a Arte é necessária para nós, não resta a menor dúvida.
O problema é o artista manter viva a noção de que aquilo que o move também poderia mover o mundo.
O Biscoito Fino que o Oswald fabrica não cansa.
O que cansa, exaure, esgota, arrasa, leva à loucura, pode levar à miséria, pode até matar… é a outra parte da frase de Oswald.
Que a massa um dia provará.
É disso que se trata a desistência, a capitulação do pendurar as chuteiras.
Existe dentro do artista uma chama perigosa de natureza coletiva. A manutenção dessa esperança gregária, dentro da alma, custa muito caro, cobra um preço que às vezes, para alguns, é escorchante.
Eu nasci fazendo música.
Menino, via brotarem sozinhas as musicas nos meus dedinhos no piano, as melodias soavam espontaneas dentro da minha cabeça, como se fosse um radinho transcedental, soprando frases e versos sem que eu fizesse esforço nenhum…
Eu brincava de compositor.
A musica era um dom lúdico, e eu me espelhava num mundo que pipocava música por toda parte, haviam modas e bossas, os Sambas-Canção, as praieiras de Caymmi, a bossa nova, a Jovem Guarda, Ray Charles, Stevie Wonder, Jorge Ben,
Beatles, Stones, Dylan, Simon & Garfunkel, Cat Stevens, Chico, Milton, Taiguara, Caetano e Gil, tudo brincando em mim, nas festinhas do colégio e reuniões de família, nas ruas, por onde eu fosse, tudo era música, música, música.
Nunca questionei esse dom lúdico dentro de mim,eu era estudante, jovem, era natural da minha personalidade, e os amigos se divertiam comigo, me atribuiram muito cedo esse papel na turma..
Um dia, profissionais gostaram do biscoito que eu também fabricava, e eu passei a fazer parte da galeria de nomes que eu cultuava, virei um deles…
Hoje, já faz 50 anos esse “virar um deles”.
Passei a ter uma condecoração chamada “sucesso”
Décadas se passaram, e eu me acostumei com a condecoração. Mais tarde, cairia a ficha .
Porque mais tarde me perguntam sobre este tempo de se aposentar, que “eu não preciso mais provar nada a ninguém … “
Como assim ? Precisar provar para alguém … é uma visao equivocada…as pessoas fazem coisas por isso ?
O sonho não é ser percebido. O sonho é. Apenas.
Mas eu mesmo me faço essa pergunta, quando é o tempo de parar ?
Parar o quê, exatamente ?
E aí vem a resposta, crua e cruel : parar de sonhar.
Um artista jamais estará aposentado enquanto não estiver cansado de sonhar.
Muitos, pelo contrário, já estão mortos, sepultados, por mais que estejam em plena atividade pública.
E com grandes condecorações de sucesso !
É isso mesmo ?
O pior é que é.
Vou explicar :
A atividade artística (…ao menos para pessoas parecidas comigo) tem duas vertentes, uma delas depende de ser alimentada pela chama do sonho.
O sonho, o delírio criativo.
Esse exaure. Consome. E faz correr todos os riscos, principalmente da desatenção e do desinteresse de um mundo focado na condecoração. O “sucesso” .
A outra vertente é pragmática, mecânica e automática: é seguir se repetindo eternamente e colher os louros da fama e da grana sem muito questionamento, é viver do sucesso.
Esta vertente cansa também ? Sim. Mas é diferente, porque oferece a gratificação imediata do aplauso e da conta bancária.
É menos nobre, por isso ?
Não necessariamente.
Cada um escolhe o que lhe agrada mais.
Chopin se torturava em busca do “sublime” …não se contentava em ser atração aristocrática na Sala Pleyel em Paris, divertindo casacas, cartolas, tafetás, carruagens, charutos, piteiras e absintos.. e partiu para Marbella para fazer seus prelúdios para a Eternidade. Cada um, cada um.
Eu adoro Chopin.
Estou 100% compositor, me esmerando em sonhar… mas mergulhado nesse universo de questionamentos.
Querem saber ? Estou adorando !
É por isso que posso afirmar que nunca, em toda a minha trajetória, estive tão longe de “pendurar as chuteiras”.
Voilá !