Anos 70

Vôo Salvador/ São Paulo. 2013, um “sol de quase Dezembro”.
Agora é 1970. Ano da Copa do México, o Banespa…E quase que o Brasil não passa da Inglaterra, não fosse a cabeça milagrosa do negão…90 milhões em ação, pra frente Brasil, do meu coração…Colégio Bandeirantes, dificílimo, a turma era de craques que prestariam ( e a maioria iria passar ) para Medicina na USP, e eu boiava total, vinha de um histórico lamentável no Colegial do Roosevelt …Lembro que foi no Catedral ( ou no Jabér – no Paraíso) onde a gente ia comer esfiha de lanche…que soube da morte do Jimi Hendrix…O Cursinho no meio do ano foi o “Med”, na Augusta ( hoje “baixo augusta” ) e era mais um pretexto pra eu sair pelas noites, andarilho pela cidade, sempre solitário com meus caderninhos. Em casa, eu, angustiado, procurava não ficar , minha realidade era nas ruas. E em Sidarta, Demian, O Lobo da Estepe. O Processo e Metamorfose, Hesse, Kafka., Sartre, Maiakovski, Marcel Proust -Em Busca do Tempo Perdido , o Caminho de Guermantes. Os Beatles e Abbey Road – Here Comes the Sun…It´s all right…Até hoje, o arrepio da perfeição. A noite absurda da Ditadura, os anos sombrios…a odiosa pipoquinha soletrando a letra na TV: “ Esse é um Brasil que vai pra frente… ,hou,hou,hou,hou,hou… “ Não passei no primeiro Vestibular, eu ainda estava preso na segunda época, precisando de 7,5 de Química, 8,5 de Física e..pasmem..9,5 de Matemática ( média anual de 0,5 ) como o legendário Prof. Cattoni…esse era pedreira…mas era um coroa absolutamente genial, fã ardoroso de “Jeannie é um Gênio”…passei em exame oral, Calculo, nem acredito, ele me deu 9,7, dizendo que 10 ele nem daria para Leibnitz… e me livrei da tragédia com o papai, estudando naquele verão escaldante de 70 para 71 como nunca havia estudado antes..E então eu iria para o Anglo, prestar “pra valer” para a FAU, a velha FAU que me atraía por causa da história de Chico Buarque… Cursinho…Eu ainda lutava contra as espinhas no rosto –um flagelo terrível – por um tempo meu apelido foi “abacaxi”- vivia tomando sol, eternamente bronzeado, o Stavale ( física ) me pôs o apelido de Chocolate…E quase que o apelido grudava, como grudou o “Maisena” no Luiz , o melhor desenhista que conheci, um gênio… Moedor de carne, fábrica de salsicha, o vestibular se transformou numa obsessão, me vi um devorador de apostilas, competição desvairada…Foi o ano de Toquinho e Vinícius…”Um velho calção de banho…o dia pra vadiar…” aquele disco genial, como marcou, Vinícius em plena forma, cantando a Bahia, feliz…e ainda faz parte total de mim….Na verdade, eu não iria para a adorável FAU da Rua Maranhão, mas sim para a na FAU de Villanova Artigas, a FAU nova de concreto, com suas inúteis mapotecas…em meio aos jardins totalitários do “campus”. Na prova de Linguagem ( a famigerada “segunda fase” ), o tema “A Praça e o meio urbano”…vinha a calhar…e eu arrasaria com um poema sobre o mendigo na praça…uma letra cavalar de música pronta, que eu tinha feito nas caminhadas solitárias da noite…”Sua sombra projetada na calçada…” Mais uma vez, a música me salvaria…A música e a poesia sempre foram tudo pra mim, o meu motivo de existir. Amigos novos, o Bicalho, o Ruy, a Marcia Vital, e tantos outros que ainda quero igualmente tão bem, para sempre..Que idade linda, quanto orgulho de nossa turma….Um tempo de desafio e beleza. As aulas revolucionárias do Flavio Império. As de História da Arte, então, eram o paraíso, Chagall, Mondrian, Lèger, Picasso, os impressionistas, o surrealismo… No inverno de 72, o Festival de Ouro Preto, era a cabeça de um jovem que voava… Por conta de uma namorada do Festival, fui conhecer o interior de Minas, Piacatuba de Leopoldina…Eu viajava de ônibus na madrugada, Viação Transcolin, passando pela fantasmagórica Siderúrgica de Volta Redonda por volta das 2 da manhã, levava 7 ou 8 horas até Leopoldina, e depois ainda tinha o “cata-jeca” até Piacatuba…Um povoado simples, tudo novo pra mim, com uma igreja, uma escola, o mata-mata (bilhar) e o céu estrelado do interior do Brasil…Olhos fechados, agora viajo fundo num tempo remoto de ócio e serenidade…Agora, que estou cansado do presente, nervoso coma compressão de um tempo desvairado, árido, escasso de flores emotivas exceto dentro do nosso santuário particular…Esqueço agora do mundo embrutecido pelas ocupações supérfluas que hoje fazem o cotidiano compulsório da modernidade… Lá fora, a velocidade inútil e ruidosa de um mundo conectado que perdeu noção da pureza . Lá dentro do santuário da memória inexpugnável, viva, o passado inocente , pra onde fujo a escutar as mangueiras repletas de cigarras chiando, no alto verão, na tarde tórrida e preguiçosa do vilarejo… Ligações telefônicas com telefonista (o próprio “ oh, telefonista” de Feira Moderna, do Beto Guedes…) Por isso me tornei um primo bastardo do Clube da Esquina… Jogo de futebol da peãozada, os beques de fazenda, um deles – um tal de “Aú” ( devia chamar Artur, mas, fanho e desdentado, era mesmo o “Aú”…partia pra bola bufando: Aú…Aú…Aú…era um perigo, ranca-toco total…E a torcida apupava : Aú…Aú…Eu era o maior perna-de –pau, corria com a bola pela ponta-direita, ninguém me parava…quando conseguia cruzar, era sempre gol…Mas na maioria das vezes, saia com bola e tudo , daí o meu apelido naquele “baba” : Vaca Louca. Pipocâo, com medo de fraturas num “campo” (pasto) repleto de cupinzeiros de barro duríssimo… Verão de um Brasil rural e familiar, que não encontro mais por mais que procure na saudade ( hoje é só agronegócio, só cheiro de cana e laranja podre, hoje é a peãozada cortando cana atolada no crack ) e ficam num passado sagrado as jabuticabeiras, os caules revestidos de bolinhas pretas e doces como brigadeiros sem culpa …(naquele tempo, encarapitado lá no alto, devorei três “pés sozinho, isso mesmo, mais de 10 quilos de jabuticabas enormes com caroço e tudo –deslumbrado sem a menor noção – fiquei bem umas 3 semanas sem cagar, fui parar até no hospital pra desentupir , tirei chapa do intestino, parecia um concreto com brita, quase morro) . Mas estou aqui, bem mais de 40 anos depois. Quantos perigos, quantas quedas de árvore, quanto carreirão de boi, de bode, de touro, de vaca brava, de cachorro bravo, pulando cerca ,emaranhando no arame farpado, picada de aranha caranguejeira , ataques de abelha, de marimbondo, formigas lava-pé, carrapato, micuim no saco, berne na cabeça, chá de lírio, de cogumelo, porres de conhaque, de campari e licor… E quanto tombo no amor…e como a vida é mais forte! Estou em mais um vôo. Agora estou lá. Ao longe, o mugido confortável no pasto, as galinhas ciscando no terreiro…Café em côco, secando ao sol. Garrafões de cachaça no chão da tapera, tampados com sabugos de milho. Fogão de lenha, o ploc- ploc das panelas de ferro de arroz e feijão na banha, do doce de abóbora no tacho….a tarde caindo laranja e violeta, o banho de ribeirão…Naquele verão reinavam absolutos Gil no 2222,” O sonho acabou…ihh”…”A ema gemeu no tronco do Juremá”…”Se oriente, rapaz…” e muito, mas muito Milton e Lô, lá no Clube da Esquina, “com sol e chuva você sonhava…”,”se você quiser eu danço com você no pó da estrada “ “o que vocês diriam dessa coisa que não dá mais pé”…”alguém que vi de passagem…numa cidade estrangeira…lembrou os sonhos que eu tinha e esqueci sobre a mesa …como uma pêra se esquece…dormindo numa fruteira…” , “ “coisas que o vento vem às vezes me lembrar”.. “para quem quer se soltar..um vento cais, um vento mais que a solidão me dá…invento lua nova a clarear…invento em mim o sonhador…“ pensar que fui um dos privilegiados expectadores de um show histórico do Milton, com Toninho Horta, Novelli, Luiz Alves, Wagner Tiso, Robertinho Silva, meio vazio, por sinal, no velho Teatro da GV, e eu chorei tanto…era exatamente aquilo que eu queria ser…buscar…custasse o que custasse…Ainda ouço lá ( e sempre vou ouvir ) muito Pink Floyd do Atom Hearth Mother, o disco “da vaca…”…”Would you like to say something before you leave …Perhaps you’d care to state exactly how you feel …We said good-bye before we said hello… And I would like to know …How do you feel, how do you feel, how do you feel? Pá..pá pá…” … e pensar que isso ecoava na abertura do Jornal Nacional… neste vôo estou ouvindo bons tempos em que o “mainstream” flertava com a vanguarda…e ainda está lá a profundidade do Egberto Gismonti, do “Água e Vinho”. Essas coisas aí sou eu ! São eles, mas também e completamente sou eu…Me desculpem se agora não estou no tempo de agora. Com licença, mas preciso urgentemente voltar para lá. E esse é o vôo de hoje.

( 4 de Dezembro de 2013 )