Carnavais e Festivais- A Praça de Alimentação

Acompanho, de longe, a escalada dos carnavais, a escalada dos festivais, a coletivização compulsória, a desindividuação,
a insana praça de alimentação com seus aromas e temperos todos misturados, orégano com shoyu, frango frito e hamburger com dendê, sei que tudo é antropofágico, é divino e maravilhoso, mas também sei que eu não pertenço ali, sou um outsider, talvez eu seja apenas mais um chato parnasiano gongorista, sem samba no pé, sem tirar o pé do chão, hoje mais do que nunca, operado e sem cinturinha de mola, um dissidente da multidão divertida, não sei quem sou ali, onde todo meu bairro poético se transforma num lamaçal da urina que transborda dos mitórios químicos, as montanhas de garrafas de gin da playboyzada se confundindo com as ilhas oceânicas de garrafas pet, com os batalhões de multidões de desvalidos amassadores de latas de cerveja sem lúpulo nem malte, que brotarão da madrugada ressaquenta quando a zoada dos geradores se for, a zoada dos palcos móveis de andaimes se for, a zoada dos blocos e das bandas silenciarem sua alegria de plástico, neon e fantasia do absurdo feérico do qual sou degredado desgarrado, um eterno ausente esquecido por não ter serventia. Obsoleto na minha irritante razoabilidade plausível. O mundo prefere o nonsense. “Stop making sense”. Amo ardentemente a “multidão transgressora” da mesma forma que violentamente a rejeito com uma náusea tóxica. Quando tudo quer transgredir, a transgressão é conservadora e reacionária porque obrigatória. Vejo os bairros poéticos que um dia amei, por onde um dia andei ouvindo meus passos na calçada, onde deixei um pedacinho de mim, se transformando num campo de batalha da violência, da truculência, da inconsciência prazerosa da dor transmutada em esgares de sorrisos e caricaturas de antigos pierrôs e colombinas que já morreram nos desfiles de almas penadas e mortos-vivos sem graça, sem beleza e nem espírito do que foi um dia a minha mais pura fantasia de pirata, agora sem confete ou serpentina, só o imenso ribombo do éter ecoando seu feedback na cabeça. Estamos num tempo em que a carnavalização desalmada toma conta do mundo, e em especial do país, o ano inteiro, em trezentos festivais anuais de “música” imersivos em experiências holísticas com a mistureba de aromas e sabores da grande praça de alimentação de uma humanidade perdida no pesadelo enclausurante de um grande navio temático com suas marcas patrocinadoras e suas chancelas globalizadas, um pesadelo de bizarrias e ostentações. Sou um simples humano, um humano simples como os ribeirinhos, como os animaizinhos assustados e toda a natureza silenciosa e incrédula dos poetas e dos angustiados assistindo curiosos a passagem desse imenso transatlantico feérico da grande festa que desce o silencioso rio veloz, rumo a uma gigantesca catarata que espera e desaba rio adiante, o mundo quer ser uma só sagaz alegria, mas é só uma fugaz alegoria, estou agitado, parece que é um sonho, parece que foi apenas um pesadelo, então é de madrugada, deixa pra lá a alegria/alegoria alheia, deixo tudo existir como quiser, sem julgamento, que não sou ninguém para condenar nada, deixa a humanidade ser e existir como quiser, como preferir, já que apenas existir já não é pouco, e já não é pouco absurdo simplesmente ser, então viro de lado e procuro de novo dormir em paz porque amanhã será um lindo dia.